The main three things you need to find treasure

Acidental

Lesley Nneka Arimah


Você tinha seis anos da primeira vez que caiu. Antes disso você era jovem demais para cair e tinha que ser derrubada, empurrada, como se escorregasse, para parecer autêntico. Você aprendeu a cair por uma questão de autopreservação, já que sua mãe empurrava muito forte, derrubava de muito alto. Vocês se sustentam dessas quedas há anos, às vezes ela caía, mas, na maior parte das vezes, era você. Uma criança chorando causa mais comoção do que uma mulher bonita, mas que já está envelhecendo.

Cair é uma ciência. Não se pode tropeçar no próprio pé, cair com a cara no chão, e esperar uma recompensa. Primeiro, encontre (ou crie) algum tipo de poça. Fure o filme plástico de um ou dois pacotes de frango congelado e, discretamente, deixe os fluidos se acumularem no chão. Quando a queda iniciar, pense nela como uma dança: perna direita para cima (dois, três, quatro), perna esquerda dobrada (dois, três, quatro), aterrisse meio torta e espere pela atenção da audiência. Comece deixando cair algumas lágrimas silenciosas que se tornem gemidos de angústia conforme todos os esforços para manter a calma se mostrem vãos. Para melhorar o efeito, faça uma criança chorar junto, ou, melhor ainda, solte–a durante a queda, deixe–a escorregar do seu quadril. O bônus é que os machucados dela vão ser verdadeiros.

Todo ano, aproximadamente seiscentos processos são abertos contra supermercados do país todo devido a negligência, discriminação, propaganda enganosa etc. Duzentos deles são descartados sem alarde, cem vão a julgamento, mas os trezentos restantes são resolvidos com acordos, quantias desconhecidas e contratos de confidencialidade. A sorte está ao seu lado.


Sua vida não foi sempre assim, ao menos é o que você acha. Há um retrato de família bem preservado que sua mãe carrega na bolsa, no qual ela aparece sentada com um bebê (você, presume–se) no colo. Ela está mais jovem e mais bonita, vestindo um suéter típico de mães que ela nunca usaria hoje em dia, com uma estampa doida e colorida, como se o design fosse fruto da cabeça de um epilético em surto. Atrás dela está um homem, aquele “filhodaputa horroroso” que a engravidou e morreu dois anos e meio depois, explodido em pedaços de carne num acidente em alto mar. Você só lembra das mãos dele, grandes e cabeludas, e o gosto metálico do anel grosso que ele sempre usava. Na mesma bolsa, sua mãe carrega uma foto da casa que ela tinha comprado com o dinheiro do acordo depois do acidente. A casa é linda. É essa foto que ela segura quando chora.

Sua mãe é uma mulher que deseja a atenção dos homens. Eles vieram junto com o dinheiro, se metendo na vida dela, e também na conta bancária, e esgotando as duas. O dinheiro do acordo já não existia mais quando você fez quatro anos, assim como a casa, dada como garantia para o empreendimento de algum bonitão. Alguma coisa sobre uma academia ou um SPA, você não lembra exatamente. Vocês não falam sobre isso.

Você prefere acreditar que aquela primeira queda, a que deixou uma órtese permanente em seu tornozelo, foi real. Que ela estava tentando alcançar a maior e mais bonita berinjela da prateleira, mas tropeçou e, merda, deixou o bebê cair. O mercado entrou num acordo sem problemas, culpando os funcionários responsáveis pelos vegetais por deixarem o chão molhado. O dinheiro durou por uns três anos, e teria durado mais, provavelmente, se não fosse pelo Matthias, o mecânico. E Chuks, o segurança. E Dwayne, o estuprador, como você logo descobriu. Algumas pessoas acham fácil serem boas quando tudo está bem, mas não têm forças para aguentar as dificuldades. Sua mãe é uma dessas pessoas.

Ela podia ter recorrido ao pai, com a cabeça tão baixa que teria folhas e cascalho nos cabelos, mas ela tinha se casado contra a vontade dele, se mudado para os Estados Unidos contra a vontade dele, e tido você contra a vontade dele, tudo com um homem que ele chamava de “aquele idiota de Calabar”. Ele tinha proibido os outros membros da família de comparecerem ao casamento, e você não tem ideia da aparência do seu avô, só sabe que você não tem nada a ver com ele e que sua mãe agradece por isso.

Você já mudou tanto de nome e endereço que fica escrevendo “Amara” em carros empoeirados pelo país afora e com pó de café nas mesas de hotéis baratos, você sussurra a palavra quando vai dormir, para não esquecer qual nome é real. E é assim, ano após ano: a queda, o pagamento, a ostentação. Sempre seguida de vocês escapando por janelas de apartamentos e trailers alugados, as roupas enfiadas em fronhas e sacolas de supermercado e jogadas no porta–malas do carro (por favor, Deus, que ele funcione), rumo à próxima cidade, à próxima queda.


Você estava na sala de espera do Jones e Margus, segurando o seu braço, que estava engessado. Mas poderia ser no Hunter e Cleb, ou Dynasty e Associados, qualquer um da longa lista de escritórios sensacionalistas que vocês já tinham usado. Sua mãe estava sentada ao seu lado e ajudou você a levantar quando chamaram vocês para dentro de uma sala pequena. Em escritórios deste tamanho, é sempre um Assistente Júnior, um coitado recém–formado em Direito, que analisa as queixas. 

Você ficou aliviada ao ver uma mulher sentada atrás da mesa. Isso poupava sua mãe de recorrer ao último recurso humilhante de oferecer um boquete para convencer o advogado a aceitar o caso (e também poupava você de ter que oferecer um, discretamente, é claro – e só depois de fazer treze anos –, quando sua mãe saía da sala fingindo que ia ao banheiro). Enquanto a mulher recitava as informações que vocês tinham fornecido até agora, você pegou um abridor de cartas de cima da mesa e ficou girando–o entre os dedos. O cabo era pesado e parecia ser feito de osso.

– Desculpa, mas acredito que não poderemos aceitar o seu caso.

Vocês já estavam preparadas para isso e sua mãe começou uma diatribe cheia de lágrimas e desespero, e falsa, até a última fungada. A funcionária ficou lá sentada, educada, mas indiferente, olhando para você, não para a sua mãe. Você percebeu o seu erro, que era você que deveria ter feito o monólogo choroso desta vez. Essa encenação é muito delicada.

Se você tiver uma criança à sua disposição, use–a nas mulheres. A maior parte tem seus próprios filhos, as outras desejam ter, então algumas lágrimas certamente vão comovê–las. As mulheres funcionam para os homens, seios arfantes, lágrimas rolando. Mas quando a idade sugar a firmeza do rosto e do corpo, preste atenção nos olhares dos homens, que seguem as formas da menina em amadurecimento. Por alguns breves anos, ela será perfeita: com idade o bastante para captar a luxúria dos homens, mas ainda jovem bastante a ponto de despertar simpatia nas mulheres. Aproveite esse momento.

– A Marsha vai acompanhar vocês até a saída. E eu vou precisar disso de volta, por favor – a funcionária disse, indicando o abridor de cartas que ainda estava na sua mão. Quando você o entregou para ela, segurando–o pela lâmina, olhou–a diretamente nos olhos. Eles continham sabedoria, como se ela conhecesse tudo sobre você. Você sentiu como se estivesse caindo e alguma coisa aconteceu: você não soltou o abridor. A situação se tornou um cabo de guerra que ela eventualmente ganhou, mas só porque arrancou o objeto da sua mão de um jeito que cortou sua palma.

Sua mãe, sempre oportunista, berrou: 

– Ai meu Deus, você machucou ela! Ai, amor, Graceline, você está bem? Eu vou te denunciar!

A mulher não parava de se desculpar, desenrolando lenços de papel para estancar o fiozinho de sangue. Mas sua mãe já estava a todo vapor e, amparada pela sua mão ensangüentada, marchou para o saguão de entrada. 

O escritório trocou um cheque substancial pela retirada das queixas e pelo seu silêncio, e por alguns meses vocês viveram como rainhas. Vocês foram morar em um hotel barato onde você tinha sua própria cama – uma raridade – e sua mãe dava uma quantia todo dia para você gastar no pequeno parque de diversões que ficava ali perto. Você ia até lá enquanto sua mãe se ocupava fazendo compras e com os homens que entravam e saíam da vida dela como a língua de um lagarto. Você passava os dias sentada na montanha–russa e testando sua pontaria na boca do palhaço. Você fazia questão de pegar o Túnel do Amor sozinha, apesar dos esforços de Giles, o animador do brinquedo, para encontrar um parceiro para você (“Vamos lá, rapazes, não deixem a mocinha sozinha”) e também para acompanhar você à noite, depois do expediente. As crianças esperando na fila riam porque você ia sozinha. Enquanto elas passavam o dia no parque desviando de pais superprotetores e das pilhas de esterco dos animais em exposição, você – rosto e corpo parecido demais com os da sua mãe – passava o dia desviando das mãos de homens desejosos.


– Querida, estou tão orgulhosa de você – sua mãe estava deitada ao seu lado na cama, mexendo nos ajustes plásticos da sua tipoia, um hábito que ela tinha pegado de você. Vinha um cheiro de comida chinesa do lixo no canto do quarto, onde logo se amontoariam as baratas, que nunca a incomodavam. Com a mão cheia de anéis de bijuteria, ela indicou o quarto, satisfeita. – Tudo isso por sua causa – sua palma, marcada por uma cicatriz, começou a coçar.

Você nunca considerou a possibilidade de outro estilo de vida, presa a sua mãe pelo costume e também por uma ideia de lealdade. Daí você descobriu que estava grávida. Vocês estavam no estacionamento de uma loja de conveniências e sua mãe entregou dinheiro para você comprar absorventes, algo que ela fazia com regularidade militar na terceira semana de cada mês desde seus doze anos.

– Não sei por que você ainda não tinha me pedido.

As palavras pesaram no silêncio que se seguiu. Você acabou comprando um teste de gravidez e, trinta e cinco minutos depois, sob a lâmpada tremeluzente do banheiro de um posto de gasolina, a presença do feto foi confirmada.

Quanto ao pai, havia algumas opções. Uma era o Billy, o funcionário de um escritório de advocacia e recipiente de um boquete que tinha saído do controle. Quando sua mãe pegou vocês, logo mostrou sua certidão de nascimento, que comprovava o parto de uma menina, agora com quinze anos, e jovem demais para estar dobrada sobre uma mesa, a barriga nua sobre a madeira polida, atendendo a um homem que tinha quase o dobro de sua idade. Ele não perdeu tempo e passou seu processo para o topo da lista de prioridades. O dinheiro tinha durado algumas semanas, até você precisar pagar um guincho para levar o carro até uma oficina mecânica. Lá você recebeu ajuda de Randall, um caminhoneiro, que aparentemente era o cara para quem você tinha que dar para conseguir uma carona por aquelas bandas. Três dias e três mil quilômetros depois, ele deixou você com uma última buzinada e um maço com 850 dólares. Você usou o dinheiro para comprar um carro com o Jerry, o vendedor de carros usados, que precisou ser convencido a dar um desconto no Camry verde que sua mãe tinha gostado.

Você não tinha dinheiro para ir ao médico e raramente ficava tempo o bastante em uma cidade para saber onde ficavam as clínicas públicas, então gastava todo o dinheiro em livros sobre bebês, manuais sobre maternidade, e volumes sobre desfraldamento. Você tinha certeza que conseguiria trocar uma fralda em 12,8 segundos.

– “Crianças pequenas precisam de estabilidade durante seu crescimento, para assegurar um desenvolvimento saudável” – você leu em voz alta da sua última aquisição, A fórmula para uma criança feliz. Sua mãe não tirava os olhos da estrada. Você já estava de seis meses e tinha começado a sugerir que aquela vida instável não seria um “ambiente justo” para o bebê. – O que você acha disso?

Ela aumentou o volume do rádio, cortando a conversa. O carro se encheu com o som de um baixo profundo, tamborilado. Ela estava sempre ignorando agora, levantando e indo embora sempre que você começava com um dos seus “ discursos maternos”, como ela chamava. Mas, no momento, vocês estavam presas em um veículo em movimento, então você decidiu insistir no assunto e baixou o volume. 

– Nós não podemos continuar assim. Precisamos parar, parar mesmo, em algum lugar.

– Você acha que eu sou idiota? Eu sei que a gente precisa parar em algum lugar.

– Tá bom, mas tem que ser logo – você acariciou a barriga, que agora estava do tamanho de uma melancia pequena. No início você tinha especulado que poderiam ser gêmeos, mas sua mãe só tinha virado os olhos. Você se agarrou à porta quando o carro desviou para o acostamento. Sua mãe atacou.

– Se você tem algo a dizer, diz de uma vez.

– Só estou falando que tem que ser logo. Se a gente vai parar, tem que ser logo, só isso.

– Que que é, você acha que eu não sei disso? Você acha que eu sou uma mãe ruim ou algo do tipo?

A pergunta veio de surpresa. Será que ela era uma mãe ruim? Você tinha quinze anos e estava grávida porque ela queria um desconto num Toyota verde velho. Você não sabia como responder, então não disse nada. Ela voltou para a estrada e seguiu caminho, em silêncio. 

Na cidade seguinte, ela parou no primeiro supermercado que viu. Você estava insistindo em comer o mais saudável possível, e parava frequentemente para comprar frutas, que comia rapidamente para que não apodrecessem. Sua mãe estacionou na primeira vaga que viu e entregou uma nota de vinte para você.

– Vai rápido – ela deitou o banco e fechou os olhos.

Você saiu do carro com cuidado e andou até o mercado. Em frente à porta, um grupo de meninas identificadas como estudantes da Escola Fundamental Glyndon estava vendendo biscoitos para os clientes que saíam da loja. Duas mulheres, provavelmente mãe de alguma das meninas, estavam observando, separando o troco e ajustando os uniformes. Uma das mulheres, baixinha e redonda como uma laranja, estava arrumando o rabo de cavalo de uma das meninas, que ficou mexendo a cabeça enquanto falava, e o penteado saiu torto e frouxo. A mulher logo teria que refazê–lo. Era um ato simples, fácil, mas você percebeu que nunca tinha sentido as mãos da sua mãe no seu cabelo daquele jeito. Você passou por elas, entrou na loja e pegou uma cesta. Em vez de ir na direção da comida, procurou pela seção de roupas infantis. Você não compraria nada até descobrir o sexo do bebê e até ter dinheiro para gastar, mas era divertido ficar olhando.

Um grupo de meninos pequenos correu na sua direção, segurando casquinhas de sorvete. “Com licença, moça”, Licença”, “Desculpa”. Eles desviaram de você de forma educada, e você ficou sorrindo ao vê-los ir embora, e por isso não viu a poça de sorvete derretido que um deles deixou para trás.

Você largou a cesta de compras. Seus pés deslizaram, o direito cruzando por trás do esquerdo. A órtese de metal não teve tração no piso frio. Seus joelhos dobraram e você esticou os braços para sustentar seu peso. Seu rosto foi jogado para frente. Você tinha anos de experiência e sabia que seu queixo seria o ponto de impacto, e se preparou. Mas sua barriga segurou a queda. Ela se sustentou, depois se amassou e se espalhou como uma bola de massa de modelar na mão de uma criança. A dor foi instantânea e insuportável. Você ouviu alguém gritar e o murmurinho de preocupação da multidão que se amontoou. Quando a sirene de uma ambulância começou a soar, distante, você desmaiou.


Você perdeu o bebê. A enfermeira avisou assim que você acordou. Ela foi brusca, e adicionou, “Você ainda é jovem”. Era uma menina, e você pensou no babador rosa que tinha visto numa cidade que ficou para trás. Às vezes você acordava, mas logo perdia a consciência novamente; seu corpo estava se curando. Você não pôde receber visitas por várias horas. A primeira foi sua mãe, é óbvio.

Já era tarde, mas suas pálpebras ainda estavam pesadas. Você estava deitada de lado, uma recomendação do médico. As cortinas estavam fechadas e a luz baixa embalava você de volta para o sono. Você acordava o tempo todo, sua mãe entrando e saindo do quarto. Você podia ouvir a voz dela no corredor. Estava esganiçada, e você sabia que ela estava empolgada ou irritada. Ela entrou de novo e sentou. Fez carinho na sua cabeça suada e se abaixou sobre você, os lábios encostados na sua orelha quando ela sussurrou:

– Quinhentos mil dólares, meu amor. Essa é a minha garota.

Você tirou a cabeça debaixo das mãos dela. Ela esticou o lençol sobre seus ombros, e qualquer um que olhasse pensaria que ela era uma cuidadora carinhosa. Talvez, se continuasse olhando para ela por esse ângulo, você acreditasse nisso também.


Conto publicado no livro "O que acontece quando um homem cai do céu", de Lesley Nneka Aruma, Editora Kapulana 

Tradução de Carolina Kuhn Facchin

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